Os olhos dos pobres

Renan Souza
3 min readMar 31, 2021

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Charles Baudelaire

Ah, você deseja saber por que eu te detesto hoje em dia. Será mais difícil para você compreender do que será para mim explicar, pois és, acredito, o mais belo exemplar da impermeabilidade feminina que se pode encontrar.

Passamos juntos um longo dia que me parecera curto. Juramos que todos os nossos pensamentos seriam comuns um ao outro, e que nossas almas, de agora em diante, não seriam senão uma — um sonho que não possui nada de original, afinal de contas, a não ser que, sonhado por todos os homens, ele não chegou a ser realizado por nenhum.

À noite, um pouco cansada, você quis se sentar diante de um novo café que formava a esquina de um novo bulevar ainda cheio de detritos e já exibindo gloriosamente seus incompletos esplendores. O café reluzia. O próprio gás lançava-lhe todo o ardor de uma iniciação e iluminava com todas as suas forças os muros ofuscantes de brancura, as superfícies deslumbrantes dos espelhos, os ouros das hastes e das cornijas, os serviçais levados por cães de coleira, as damas rindo aos falcões instalados em seus punhos, as ninfas e as deusas carregando em suas cabeças frutas, patês e caças, as Hebes e os Ganímedes estendendo a pequena ânfora de bavaroise ou o obelisco bicolor de sorvete misto. Toda a mitologia e toda a história postas ao serviço da glutonaria.

Bem diante de nós, na calçada, estava plantado um bravo homem de uns quarenta anos, de rosto cansado, barba acinzentada, segurando a mão de um pequeno garoto e carregando, no outro braço, um pequeno ser demasiado frágil para caminhar. Ele fazia o serviço de babá e levava seus filhos para tomarem o ar da noitinha. Todos em farrapos. Essas três faces extraordinariamente sérias e esses seis olhos contemplavam fixamente o novo café com uma igual admiração, nuançada apenas pela idade. Os olhos do pai diziam: “que belo! que belo! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio grudar nestas paredes.” — Os olhos do garotinho: “que belo! que belo! mas é uma casa onde só pessoas que não são como nós podem entrar” — Quanto aos olhos do menorzinho, eles estavam muito fascinados para exprimirem qualquer outra coisa além de uma alegria estúpida e profunda.

Os cantadores dizem que o prazer cura a alma e amolece o coração. A canção tinha razão naquela noite, pelo menos quanto a mim. Eu estava não apenas compadecido por essa família de olhos mas sentia também vergonha de nossas garrafas e de nossos jarros, maiores do que nossa sede. Dirigi meus olhares aos teus, querido amor, para ler neles meus pensamentos; eu mergulhava em teus olhos tão belos e tão singularmente doces, em teus olhos verdes, habitados pelo capricho e inspirados pela Lua, quando tu me disseste: “Estas pessoas me são insuportáveis, com seus olhos abertos como portas escancaradas! Você não poderia pedir ao gerente para afastá-las daqui?” Quão difícil é se entender, meu querido anjo, e quão incomunicável é o pensamento, mesmo entre aqueles que se amam!

Les yeux des pauvres, inn: Spleen de Paris. Tradução: Renan Souza.

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